As violências contra a mulher, patriarcado, machismo e masculinidade tóxica

Quaisquer atos praticados contra as mulheres e que visam ou pretendem impor uma condição de subordinação e controle ou ainda diversas formas de submetê-las a sofrimento físico, sexual, emocional e psicológico constituem violências de gênero e são legados do patriarcado, do machismo e da masculinidade tóxica que caracterizam nossa sociedade.

Como contribuição ao debate, importa refletir sobre as causas e/ou origens desse fenômeno, já que se trata de condição socialmente construída, em dado momento histórico e sob condições determinadas.

A espécie humana remonta há mais de 200 mil anos na região leste da África, nossos ancestrais homo sapiens há cerca de 90 a 70 mil anos e as primeiras formações sociais humanas há algo em torno de 50 mil anos. Naquele tempo, elemento importante de nossa formação social era a capacidade de cooperação e sinergia, fator que nos diferenciou de espécies que dependiam fundamentalmente da força física para a sua sobrevivência. Nesse estágio primitivo e comunal, há indícios de que as mulheres possuíam um lugar central porque eram reconhecidas como sagradas, capazes de dar a vida e de exercerem com sua vitalidade influência direta sobre a fertilidade da terra e dos animais. O feminino era expressão da criatividade e da vida. O masculino e o feminino, em sinergia, regiam juntos e, embora houvesse divisão de trabalho entre os sexos, não havia subordinação de um gênero ao outro. Características e diferenciações masculinas e femininas no processo de divisão do trabalho eram sinérgicas e complementares e não havia coerção e submissão.

Em paralelo aos homens, a quem cabia a prática da caça, expansão e proteção territorial, a ocupação da mulher com as práticas de coleta e o desenvolvimento primário de habilidades com a terra foram determinantes para aprimorar o cooperativismo e desenvolver cognitiva e funcionalmente a espécie humana, além de recair sobre ela a atenção e o cuidado sobre os filhos. Seu papel direto na gestão do território, conferia características matriarcais a essas primeiras formações, sobretudo onde não havia pressão por conquistas de novos territórios. A vivência comunal regulava as relações em todos os aspectos e havia compartilhamento de responsabilidades com o território, o trabalho e a prole.

Mas à medida em que se desenvolvia a agricultura, em substituição à caça e à coleta, com o desenvolvimento de ferramentas mais avançadas, como o arado, a espécie humana definitivamente deixa de ser nômade. Assim, com o surgimento das primeiras aldeias, surge a possibilidade de regulação e posse dos ainda rudimentares meios de produção e acumulação disponíveis. O homem, que não precisava mais de sua força física para a caça de animais de grande porte, tão pouco para a expansão de territórios para fins de sobrevivência, volta-se para a divisão do trabalho e o faz com a diferenciação de classes, raças e gênero.

Como consequência, o patriarcado comparece como meio para assegurar a sucessão da posse de um homem-pai que não poderia ter certeza de sua descendência em um ambiente poligâmico e libertário sexualmente. A garantia de sucessão da propriedade privada emergente impõe uma forma de família baseada no parentesco masculino e no poder paterno e, para tanto, necessariamente de repressão das mulheres, que passam a estar hierarquicamente subordinadas aos homens, e de desvalorização do seu trabalho e de seu papel social,  além de legitimar o controle da sexualidade, dos corpos e da autonomia feminina. A monogamia se impõe às mulheres, já que aos homens seguem válidos um conjunto de padrões permissivos, e a mulher fica reduzida ao âmbito doméstico privado.

O homem passa a ser Senhor do Estado e das instituições que passam a regular a vida em sociedade e das propriedades privadas dos meios de produção e, portanto, do poder econômico. Como subproduto dessa lógica a mulher passa a ter seu papel castrado, perde qualquer capacidade de decisão no domínio público e se torna inteiramente submissa e dependente, social, econômica e psicologicamente, do espaço reservado ao homem.

“Quando se afirma que é natural que a mulher se ocupe do espaço doméstico deixando livre para o homem o espaço público, está-se, rigorosamente, naturalizando um resultado da história” (SAFFIOTI, 1979). Esta naturalização, segundo a autora, constitui caminho mais fácil e curto para legitimar a ‘superioridade’ dos homens.

Na alta Idade Média, as mulheres passaram a ter acesso às artes, às ciências e à literatura. E é logo depois dessa época, no período que vai do fim do século XIV até meados do século XVIII, que aconteceu a repressão sistemática do feminino, de forma generalizada na Europa, com os quatro séculos de “caça às bruxas”. (MURARO, 2015).

É justo nesse período histórico que Estados e religiões, em especial a católica e a protestante, institucionalizam o processo de submissão, julgamento e condenação da mulher, valendo-se para isso da autoridade que lhes era conferida pelo credo em uma força ou poder Superior, inquestionável e que nunca se equivoca. Essa contraofensiva visava recolocar dentro de regras de comportamento dominante, em um momento de questionamentos da ordem vigente, sobretudo as mulheres, com o aprofundamento de aparatos repressores e de dominação.

Séculos depois, quando não há mais uma “caça às bruxas” no sentido estrito, o que vemos é uma cultura do patriarcado e do desprezo à condição feminina introjetada em nossa dinâmica social, como se fosse natural, imutável e inexorável. É investido dessa supremacia que o homem ressignifica de forma definitiva seu papel na sexualidade, do absoluto desconhecimento do seu papel na procriação até a transformação do masculino como sujeito da sexualidade e da objetificação do feminino. Se a base do patriarcado se assentava na indubitabilidade da sucessão parental, à mulher só caberia o lugar de repositório e incubadora. É revelador a designação imposta ao órgão genital feminino de “vagina”, conquanto a “bainha onde se guarda a espada”.

Ao masculino é legado o lugar da ação, da decisão, da liderança, da chefia da rede de relações sociais e familiares e da “paternidade”. Legado que se estendeu exponencialmente por todos os terremos de nova vida, inclusive daqueles mais significantes e que nos definem como nação e como povo, como a língua, a mídia, a música e a literatura, e também a lei.

A força do machismo reside justamente no reforço e disseminação dessa ideologia e da cultura da “superioridade do homem” e da consequente submissão da mulher nas esferas pública e privada. Com os homens, gerações após gerações, assumindo papéis dominantes e exercendo esses papéis ainda que às custas da disseminação de uma cultura da repressão, de submissão e de violência contras as mulheres, há uma perpetuação das condições históricas e sociais para sua preservação. A dominação masculina, como uma afirmação da virilidade e da superioridade do homem diante da mulher, transcende a condição de gênero e se alastra mesmo entre as mulheres que, despossuídas da percepção de sua condição ora se sujeitam, ora se vitimizam e, muitas vezes, se transformam em veículos intergeracionais do discurso repressor, dominante e patriarcal.

As múltiplas formas de violências contra as mulheres, sustentadas pela cultura vigente, surgem como uma reação quando o homem pressente que está perdendo ou tendo questionado o seu poder e percebe a limitação da sua própria existência que, ao fim e ao cabo, fica clara quando pensa o mundo sem o indissociável papel do feminino.

Romper com isso passa por ressignificar o papel do feminino, mas também e sobretudo,  por dissolver os fundamentos do patriarcado e do machismo. Um movimento não pode prosperar sem o outro; ao contrário, só adquire caráter emancipador quando trata de desconstruir em todos, homens e mulheres, as bases sociais, econômicas e sexuais da dominação.

O resgate do feminino e sua emancipação passam pela superação desses limites de relação com o masculino nas esferas público e privada, como meio para e não como fim em si mesmo. Se há um lugar a chegar, esse lugar é o matriarcado e a devolução à mulher de seu papel de célula mater, vital e criativa, sagrada e empoderada.

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